sábado, 28 de fevereiro de 2009

PATATIVA DO ASSARÉ


Texto de Pe. Antônio Vieira





Em 1981, quando se realizava a Primeira Semana Universitária, em Iguatu, Patativa do Assaré foi o convidado de honra para dar realce, brilhantismo e motivação àquele certame cultural e social. Por acaso, nesse tempo, eu me encontrava na cidade, e a equipe promotora do simpósio universitário teve a gentileza e distinção singular de me convidar para fazer, na abertura dos trabalhos, a saudação a Patativa do Assaré. Aceitei a incumbência com prazer e desvanecimento.

O salão de festa do Centro Recreativo Iguatuense estava cheio à cunha, e grande era o número de curiosos que se adensavam de pé, comprimidos, porque não havia um espaço, por menor que fosse.

Iniciei a minha saudação mais ou menos nestes termos: "Não gosto de Patativa do Assaré. Não o suporto. Não o tolero. Não consigo ocultar ou disfarçar a minha ojeriza ou antipatia por ele ... "E continuei, por algum tempo, batendo nessa tecla, diante do assombro, do escândalo, da surpresa, do desagrado e revolta estampados no rosto de todos os circunstantes e até do próprio Patativa.

Quando senti a profundidade do impacto causado, retornei ao refrão inicial: "Não gosto, não tolero, não suporto Patativa, porque eu acreditava ingenuamente, infantilmente, credulamente, fosse eu o mais autêntico intérprete do sertanejo, a voz mais altiloqüente e vibrante das angústias, das lágrimas choradas, da revolta dos nossos campônios, o microfone e alto-falante de maior potencialidade para gritar contra as injustiças e discriminações sociais e econômicas do sertão, quando na realidade esta glória e este mérito, com toda justiça, se deve a Patativa do Assaré, o cantor da raça sertaneja, do trabalhador rural, como Castro Alves foi o cantor épico e condoreiro dos escravos, encarnando no seu estro poético toda a alma da nacionalidade. Assim é Patativa, o maior cantor do sertão, de todos os tempos, estuário de tudo que sofre o sertanejo, cujas lágrimas ele condensou em fonte inesgotável de sua inspiração, que correm tão quentes nas suas veias como o seu sangue, na ardência e caldeira da sua sensibilidade e da sua indignação".

Foi aquele respiro de alívio da assistência, que, eletrizada, aclamou-me de pé, falando nesse gesto com mais eloqüência do que eu com os meus lábios, com as minhas palavras, a confirmar ao vivo que Patativa é inquestionavelmente, sozinho, mais importante e atuante do que todos os deputados nordestinos, no Congresso Nacional.

A poesia nele não é uma inspiração mental, arrancada à custa de reflexão ou introspecção interior. É uma explosão sentimental, emocionante, vulcânica. Se Patativa não fosse poeta, teria sido cangaceiro. Se ele não tivesse uma viola aconchegada ao regaço do seu coração, teria abraçado o bacamarte para escrever com pólvora, com chumbo, a revolta do sertão injustiçado, discriminado, amesquinhado, que ele hoje canta e defende no encanto, doçura, ironia, vibratilidade e indignação da sua poesia eminentemente social, humana e sentimental.

O sertão que deu um Lampião, um Antônio Silvino, um Sabino, um Cabeleira, também deu um Antônio Conselheiro, um Padre Cícero Romão Batista, um Padre Ibiapina, um Inácio da Catingueira, um Romano do Teixeira, um Rogaciano Leite, um Pedro Bandeira, um Patativa do Assaré.

Patativa do Assaré, na sua poesia, revela-se um misto de santo e demônio, de Francisco de Assis e Savanarola, a ternura encantadora de um Fagundes Varela e Gonçalves Dias, e os arroubos tribunícios ou homéricos de Rui Barbosa e Castro Alves. Como as árvores xerófilas do sertão têm as suas raízes fincadas, no solo duro e agreste, daí sugam, num milagre de biogênese, sua sobrevivência, assim é Patativa. O Brasil de Gonçalves Dias tem palmeiras onde canta o sabiá. O Brasil de Patativa tem mandacaru, xiquexique, onde a Juriti chora ao entardecer, onde o Carão grita no olho da Umarizeira, onde a Coruja rasga mortalha, na escuridão da noite.

Daí porque a poesia de Patativa do Assaré, de uma autenticidade rústica, agressiva como a natureza que o cerca, e as plantas que aqui vicejam. Poesia nascida da experiência vivencial, do contato diurno e diuturno com a terra, em que nasceu, viveu, sofreu, trabalhou e tirou penosamente o seu sustento, molhando os seus roçados com o suor do seu corpo, com o sangue dos pés feridos, nas pedras e nos espinhos, das suas mãos calejadas no cabo da enxada, da foice, do machado, do cavador, da picareta.

Poesia telúrica, colhida da terra, dos roçados como estivesse apanhando feijão, arroz, algodão, ou quebrando milho e arrancando batata e mandioca. Sua inspiração não é fruto de estudos. Ela germina dentro de si como a semente nas entranhas da terra. Por isso, ela tem o cheiro da terra molhada, quando chove, ou da poeira, quando o sol cresta o solo com a fogueira da sua canícula.

Ao tempo que rasga a terra com a lâmina da sua enxada, rasga também as vertentes de seu coração mastigado de sofrimento, quando contempla aqueles pés de milho, de feijão, de arroz, de algodão como se fossem carne da sua carne, osso dos seus ossos, sem que possa regá-los com as suas lágrimas ou com o seu sangue para revivê-los. Patativa morre em cada planta que morre. Em cada flor que murcha, em cada semente que não nasce, em cada fruto que não sazona. Mas ressuscita como a Fênix Mitológica ou se renova de esperanças e de juventude, como se tomasse um banho nas Fontes de Hipocrene, quando a chuva realiza a mutação de apoteose nos seus campos banhados de chuva e exuberantes de vitalidade.

A fonte predileta de inspiração da poesia de Patativa do Assaré é o pesado rojão na roça. A poesia brota dele como a água da fonte ou o perfume da flor, ou a planta da terra. Enquanto com as mãos cava a terra seca e dura, sua imaginação se alteia às eminências do Parnaso para a inspiração mais pura, mais sadia, onde não há musas, nem ninfas, nem nereidas, mas a vegetação esquelética, de mãos mirradas de sede e de fome, distendidas para o céu, esmolando a migalha de uma gota d'água.

Tem ele mais de mil composições poéticas, na sua totalidade compostas, enquanto rasga a terra para plantar a semente ou cortar as ervas daninhas, e todas guardadas de memória, numa fidelidade que transcende a capacidade humana. Patativa do Assaré, fazendo versos enquanto trabalha, faz lembrar Esdras e Nehemias, quando retornaram do cativeiro da Babilônia e, com uma das mãos, reconstruíam o Templo de Jerusalém e com a outra brandiam a espada, defendendo-se do ataque dos inimigos.

A literatura de um povo não é apenas a expressão vigorosa do gênio nacional, mas também e sobretudo a fotocópia da sua geografia física e humana, do meio social e humano, na perspectiva azulada das suas montanhas distantes, da extensão melancólica e selvagem dos seus tabuleiros, da projeção dos seus morros ouriçados, reverberando nas rochas quartzitadas as faíscas de corisco dos raios solares, os crepúsculos que parecem fogueiras vermelhas acesas pelos últimos lampejos do sol no ocaso, tudo isto daria uma epopéia, que o sertanejo vive na carne e no sangue, e que Patativa assimilou e transfigurou nos seus versos.

A autenticidade da sua poesia é eminentemente social, porque ela traduz toda a tragédia humana do sertanejo durante as estiagens, nas retiradas sem destino, sem lenço e sem documento. Como um estuário para onde confluem todas as águas dos rios, assim a sensibilidade de Patativa se transformou num Véu de Verônica, onde todos os Cristos sofridos do sertão vêm enxugar o seu rosto chagado ou banhado de lágrimas e sangue, onde todos os gemidos, todas as angústias, todas as palpitações, vão escoar no grande oceano que é o coração do sertanejo, irmão do sofrimento, e a sua inspiração filha predileta da sua dor e das suas lágrimas.

A poesia de Patativa é como as veredas e picadas do sertão. Tem rastro de gente, de gado, de bode, de preá, de tatu, só não tem pegadas de caiporas, duendes, almas penadas, cousas do outro mundo. Sua poesia é de um realismo cruciante. Não tem metáforas, tropos, estilizações beletristas, erudição livresca como a de certos cantadores. Suas imagens são naturais, colhidas da terra como o milho, o feijão, a batata que ele planta nos seus roçados.

A Bíblia diz que o homem foi feito do barro da terra. Mas Patativa foi feito também com o sol nordestino, com o luar prateado das nossas noites silenciosas, com as águas das chuvas, com as lágrimas e o suor do sertão.


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